A radioterapia está presente no tratamento de dois terços dos novos casos de câncer, sendo 75% deles com intenção curativa, segundo o Textbook of Patient Safety and Clinical Risk Management. Por trás da tecnologia, que é um dos pilares do tratamento oncológico moderno, há uma rotina de alta responsabilidade e risco para os profissionais envolvidos, equilibrando o potencial de cura com os perigos da exposição.
Para que a radioterapia seja segura e eficaz, cada etapa do planejamento precisa ser minuciosa. É essa a função da dosimetrista Nayara Murakami, que atua como ponte entre as equipes médicas, preparando os acessórios de imobilização e delimitando os órgãos de risco antes do início da terapia. “É uma responsabilidade muito grande.”

Cada acessório é moldado individualmente para o paciente, garantindo conforto e repetição exata do posicionamento nas sessões. A rotina é guiada por protocolos de segurança e pela dupla checagem, uma prática essencial, já que a maioria dos erros em radioterapia ocorre por falhas humanas ou de fluxo de trabalho. “Isso também traz mais segurança para mim”, completa Nayara.
O tratamento é um ataque de precisão, que utiliza radiação ionizante para destruir tumores. Essa radiação danifica o DNA das células tumorais, que, por se replicarem rapidamente e terem mecanismos de reparo falhos, são mais vulneráveis do que as células saudáveis, como explica o físico médico Paulo Petchevist.
Ainda assim, a radiação também pode atingir tecidos sadios, provocando lesões de pele, fadiga crônica e, em casos raros, o surgimento de um segundo tumor maligno (SMN) anos após a exposição.
A ponte humana na linha de frente
Enquanto a dosimetrista planeja, o enfermeiro oncológico está em contato direto com quem recebe o tratamento. Fernando Popovicz, que atua na área, ressalta o papel da empatia no processo. “A gente trabalha muito com a questão da humanização. Temos esse olhar individualizado em cima de cada paciente.”
O medo da palavra “câncer” faz parte da rotina. A carga emocional também é intensa, especialmente em casos pediátricos com prognósticos mais delicados. Para lidar com o impacto psicológico, Popovicz adota uma estratégia de distanciamento consciente. “A partir do momento que saio da clínica, esqueço dos problemas que eu tenho aqui dentro. Mas, no momento que a gente está aqui, procura sempre o melhor para aquele paciente.”
Guardiões da segurança
Os protocolos de segurança são regidos por normas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Todo profissional exposto à radiação – chamado de Indivíduo Ocupacionalmente Exposto (IOE) – utiliza um dosímetro na altura do peito, que mede a dose acumulada mensalmente. É esperado que os valores fiquem abaixo do nível de registro, indicando exposição mínima.
As salas de tratamento, conhecidas como bunkers, são construídas com concreto de alta densidade, projetadas para conter a radiação. O físico médico atua como supervisor de proteção radiológica, responsável por garantir o cumprimento das normas, realizar medições ambientais e ministrar treinamentos anuais.
Mesmo com tecnologia avançada e equipamentos precisos, o risco nunca é zero e engloba desde mutações genéticas até morte celular. Por isso, a prevenção é o principal escudo de quem dedica a vida a um trabalho que, ao mesmo tempo, cura e expõe.
Ampliação no SUS
Garantir a precisão descrita pelo físico Paulo Petchevist e a segurança no planejamento de Nayara Murakami exige que os equipamentos sejam modernos e acessíveis em larga escala.
É nesse contexto que o Ministério da Saúde lançou, em maio de 2025, o Plano de Expansão da Radioterapia no Sistema Único de Saúde (PERSUS II), parte do Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC). O objetivo é atacar diretamente os obstáculos do atendimento oncológico no País.
O plano atua em frentes cruciais para a rotina descrita pelos profissionais. A primeira é a substituição de equipamentos obsoletos, com mais de 15 anos de uso e sem suporte do fabricante, que comprometem tanto a eficácia quanto a segurança. A segunda é a instalação de novos aceleradores lineares nos bunkers de alta densidade, que muitas vezes estão prontos em hospitais, mas vazios, aguardando a tecnologia.
O PERSUS II foca em reduzir as desigualdades regionais, priorizando regiões com os chamados “vazios assistenciais”, especialmente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A meta é ambiciosa: aumentar em pelo menos 25% a capacidade de tratamento em até um ano após a instalação das novas máquinas, garantindo que mais pacientes tenham acesso ao tratamento.
A seleção dos hospitais (públicos ou filantrópicos) será feita por edital público. Em troca do equipamento, as instituições devem garantir as contrapartidas essenciais para o ciclo de cuidado funcionar, desde as adequações físicas na sala até a garantia da equipe técnica especializada, além de manter o atendimento exclusivo ao Sistema Único de Saúde (SUS).
*Alana Morzelli é finalista do Prêmio A.C.Camargo Jovem Jornalista.